não foi um acidente

sobre “acidentes acontecem” y a política do desprezo racial não ser crime no brasil da democracia racial

qdo eu tinha 11 anos comecei a estudar no plano piloto, o centro da cidade, lugar de prédios ricos, y conheci uma amiguinha na escola que morava numa daquelas superquadras. depois da aula eu ia às vezes na casa dela, nunca tinha entrado num apartamento daqueles. foi a primeira vez em que comi gorgonzola na vida, que ela esquentava no microondas sobre uma torrada, y também qdo ouvi ella fitzgerald, que é preta, pela primeira vez. o pai dela dizia que minha poesia o fazia se lembrar de florbela espanca, que eu também não conhecia. eu era só uma criança parda crescida nas satélites, orbitando o plano piloto y sua burguesia branca.

no dia seguinte à morte de miguel octávio, assassinado pelo desprezo da patroa branca de sua mãe, tive que ler da fulana em que a amiguinha cresceu pra tornar-se: “sinto muito pelo menino miguel. entendo todos os argumentos e todo o contexto do racismo estrutural, classismo, mas não acredito que essa mulher julgasse que algo tão ruim poderia acontecer. acredito que ela achou que ele ficaria perdido, choraria, mas que, enfim, alguém levaria o menino de volta para casa, ou ele aprenderia a voltar. o prédio deve ter segurança e ela pode ter pensado que do portão ele não passava. digo isso porque, na infância, conheci muitos pais de amigos que ‘educavam’ assim. aos cinco anos de idade me vi inúmeras vezes nessa situação: sozinha em elevadores e em muitos outros lugares. ninguém queria me matar por isso. pode ser que todo mundo aqui tenha razão, que ela não se importasse, mas prefiro acreditar na humanidade das pessoas”. comentei que essa fala era muito racista e que a ia bloquear porque estou cansada de me adoecer com o cinismo humanitarista das pessoas brancas.

no brasil, racismo é crime. mal-julgado, subnotificado, ridicularizado, mas é crime. o racismo é entendido como crime de ódio, não de desprezo. obrigar uma funcionária doente de covid a trabalhar tem a ver com o racismo como desprezo racial y de classe, o que é vil, aberrante, desumano y terrível, mas não é crime no brasil. hoje em dia já é difícil conseguir uma sentença que criminalize alguém que xinga abertamente uma pessoa negra de macaca ou preto feio. ainda mais difícil é mostrar a articulação da psiquê colonial FORJADA NO SADISMO VISUAL DE 300 ANOS DE TRÁFICO, EXPLORAÇÃO ESCRAVIZADA Y PUNIÇÃO FÍSICA/MORTE DE PESSOAS NEGRAS TRATADA COMO ESPETÁCULO ao tipo de discurso que transcrevi ali.

é difícil porque vivemos no meio do mundo branco. todas as pessoas, brancas ou negras, ou indígenas, ou amarelas, ou ciganas y outras raças-etnias que eu não sei nomear, vivem no meio do mundo colonial de supremacia branca que aprendeu a nos odiar de formas explícitas y que depois de séculos seriam, algumas, consideradas crimes; y de formas veladas que não são consideradas crimes. mas sim “acidentes”, “descuidos”, “acaso”, “desmotivadas”. só uma pessoa branca que cresceu na porra da 109 sul da asa sul de brasília, com aqueles prédios enormes y apartamentos onde as crianças comem gorgonzola esquentado no microondas ouvindo ella fitzgerald na hora do lanche y ouvindo o pai ler florbela espanca, só pessoas que são brancas y criadas na ilha da fantasia que o racismo cria pras pessoas brancas, é que não acham brutal y criminoso o fato de uma mulher igualmente branca ter um cachorro provavelmente comprado com o qual ela mesma não desce y negligenciar o cuidado com uma criança negra de cinco anos num prédio em que ela não mora, com elevadores que ela não conhece, porque elas todas, as pessoas brancas que assistem isso y querem apelar pra humanidade descuidada da assassina branca de uma criança preta, foram ensinadas a nos desprezar.

a não entender que somos humanas. que crianças humanas pequenas precisam de supervisão, INCLUSIVE AS NEGRAS, y cuidado constante, que não devem ser largadas em elevadores nem que esse seja o projeto de educação que elas brancas têm pra suas próprias crias (até pq não se tratava da cria dela); só as pessoas brancas no brasil colonial branco supremacista é que acham que foi um acidente uma mulher adulta branca largar uma criança negra de cinco anos sozinha num elevador y acham que estão isentas de sua própria branquitude ao lamentar muito a morte da criança como se fosse natural. como se o desprezo racial não fosse programado y premeditado y reentalhado enquanto elas assistem “jornal policial” na hora do almoço um mar

de corpos pretos

mortos.

só as pessoas brancas, com sua psiquê racista colonial, é que tentam relativizar mortes negras causadas por brancas, porque de verdade nossa vida não importa a elas, y começar uma postagem falando o nome de uma criança negra morta por uma mulher branca pra defender o direito “de errar”, “cometer acidentes”, “ser humana” da mulher branca que matou a criança negra é também parte da política branca de desprezo racial y uso de nossas mortes como alegoria pra defesa de suas preciosas vidas brancas.

a mulher pagou 20 mil reais, que ela por acaso tinha em sua conta bancária, y a reportagem que eu li dizia que o que ela fez “PODE SER CONSIDERADO NEGLIGÊNCIA”, assim, super ameno.

porque cada vez menos é sobre miguel, joão, demétrio, marielle, george, são muitos nomes, que me cortam ao lembrar, y cada vez mais é sobre o surto de consciência branca antirracista que elas tão tendo 520 anos depois, meio milênio depois, do mundo que as faz viver como humanas y nós como lixo desprezável y mortes acidentais y seus eu-sinto-muito significando que a cada vez que elas aprendem com nossa dor se tornam “humanas melhores”.

o antirracismo de vocês é impossível porque vocês são brancos vivendo num mundo supremacista que mata, despreza, explora, desumaniza quem não seja vocês, pra que assim vocês possam viver.

sentir muito não muda nada disso. uma criança negra morreu porque uma mulher branca pôde desprezar sua vida y não ter sua cara estampada em todos os jornais como monstra assassina (o que não estou dizendo que ela seja ou não, mas é como a mídia gosta de falar de mulheres que matam crianças). uma mulher branca foi DIRETAMENTE responsável pela morte de uma criança negra de cinco anos y há pessoas brancas que querem culpar a mãe da criança por ser empregada doméstica y o quê, não ter dinheiro pra pagar uma creche? y em tempos de pandemia ter que levar sua criança pro trabalho? tb foi culpa da doméstica que a patroa comprou um cachorro y não quis descer com ele?

o antirracismo de vocês é cínico porque vocês querem lotar atos antifascistas pra levar covid de volta pras casas onde suas empregadas pretas continuam vos servindo. o antirracismo de vocês é um devaneio porque vocês dizem fogo nos racistas achando que estarão livres das chamas. o antirracismo de vocês é uma mentira porque não é sobre ninguém além dos seus próprios egos.

esse é o mundo de vocês. y vocês estão cada vez mais confortavelmente racistas nele. o antirracismo de vocês é racista. y uma criança negra está morta porque vocês nos odeiam. nos desprezam. e, de uma forma ou de outra, querem que a gente morra.

#JUSTIÇAPORMIGUEL

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